Ontem assisti ao novo filme de Wim Wenders. Conhecido por obras como Paris, Texas e Buena Vista Social Club, além do meu preferido, Asas do Desejo, os filmes dele me emocionam pela simplicidade e a variedade de camadas que emergem de sua absurda concisão. Em Dias Perfeitos, ele leva a concisão ao extremo, a vida parece ser o acúmulo máximo de simplicidades. Se parece que fazemos, como na música de Chico Buarque, tudo sempre igual, Wim Wenders prova que não é exatamente assim, que a repetição é uma distorção de nossa mente e os nossos rituais cotidianos valem mais. Portanto, recebi Dias Perfeitos com entusiasmo, com certa melancolia típica das nostalgias comuns, daquele mesmo tipo de coisa que me faz assistir novamente os meus filmes antigos e conversar tolices como “no nosso tempo era mais legal”, mas acima de tudo, recebi com o coração.
Somam-se as tolices (e o coração) à vontade em tornar próximas antigas lembranças, de quando o clima ameno de junho trazia novidades juvenis e não havia problema algum em abocanhar as 10:00 da manhã um enroladinho de salsicha com um copo de Coca-Cola, e o resultado é a memória querendo dizer sobre uma recém-descoberta no presente. Mas o que a memória pode fazer por mim nesse instante e se pode alguma coisa por que retomar coisas antigas e muitas realmente datadas (exceto pelos vendedores e restauradores de máquinas de escrever, a eles está guardado um lugarzinho bom no paraíso) como climas amenos e comidas com alto teor de glúten em favor de exibir alguma novidade, um estalo de nova consciência? Se a nostalgia não salva ninguém, por que ela é o fio narrativo de Dias Perfeitos?
Enquanto procuro na memória sobre as minhas conexões na pré era do celular e ainda mais gravemente, do iPhone, só vejo na minha frente um mundo mágico e perfeito, realmente. Além de poder, ler uma página de Palmeiras Selvagens do Faulkner por dia e eu daria graças se pudesse ter lido desse livro uma página por dia, nessa minha nova visão desse futuro noir, onde fotografias de topos de árvores num junho em 2024 são encaixotadas com etiquetas por dia e mês até formar um ano, eu me ocuparia do presente, como me ocupo dessa crônica.
De verdade, eu só vejo possibilidades incríveis de contemplação e tédio na minha frente e estou pronta para seguir com elas, só consigo pensar na alegria em, de novo, como fazia na era pré-celular, com a cabeça voltada para o teto contando sombras, poder pensar a mesma coisa por diversas perspectivas como faz o olhar da máquina cânon do protagonista de Dias Perfeitos.
Alcanço a proteína hidrolisada aqui da minha cozinha e me satisfaço com o pensamento de que as coisas realmente mudam, não como gostaríamos, é verdade e tão mais quanto supomos, entretanto, vivemos numa cadência imprópria para o ritmo de nossa espécie, que acordaria com nascer do dia e dormiria com o pôr do sol não fosse, bem, não fosse o capitalismo, sejamos óbvios.
Eu e meus amigos dizemos, num desses transes coletivos a base de carlton vermelho e sessões repetidas dos filmes de Richard Linklater, ainda bem que fomos jovens quando não havia internet. E ainda bem mesmo, sinto que fomos mais inconsequentes, livres, nos vestíamos sem grandes preocupações (sim haviam revistas, novelas, mas quem em sã consciência tiraria foto da camisa de flanela já com mau cheiro de suor adolescente que andava pra cima e pra baixo comigo só para lembrar do namorado e postaria na rede social, gente?)
Eu jamais tomaria whey protein se não fosse pelos meus quarenta e dois anos e um histórico de diabete na família. Treino por medo de envelhecer terrivelmente mal, devo admitir, e talvez, só pra jogar com alguma hipótese, eu não quisesse falar sobre os suplementos, a ioga, os treinos, só talvez eu não quisesse falar nada disso, para ninguém, ainda mais para desconhecidos do feed. Mas falo.
Dias Perfeitos construiu um quarto de guardados no meu cérebro, e se bem que é um organizado, em que eu tiro da caixa de papelão grafada aqui do lado, um Nokia 3310 e sou feliz apenas esperando uma ligação importante, fotografando a criança que agora passa na minha frente segurando um balão colorido com as minhas retinas, e durmo sentindo aquela leseira gostosa após ler só uma página de Faulkner (realmente uma boa ideia) e sonho em preto e branco, me surpreendo com beijos roubados na bochecha. Vou num show de rock e levanto um isqueiro aceso, sabe? Bem, devo estar em um transe, onde seguro um carlton vermelho entre os dedos, abro uma skol gelada, e falo de Antes do pôr do Sol na casa de amigos. Sem mostrar pra ninguém o que é isso, ouvimos músicas boas em fitas cassetes.